Uma mãe embala o filho morto e o mundo vê: o coração da mulher brota da pelve - bate, cresce e nasce com choro de criança e ali se morre a mulher - sua vida agora trespassada pela vida de seu filho, o medo fundido com a esperança - não existe mãe feliz. 

Quando um filho morre - a linha invisível da dor que conecta todas as dores se encurta e aproxima o coração de todas as mães que juntas choram a criança perdida. A mãe reconhece na outra a condição humana: encontrar significado no exílio de si.

Não conheço a fome, a guerra e a dor física extrema, tive a sorte de nascer mediana, em uma família comum, numa cidade medíocre. Meu sofrimento virtual em meu próprio diálogo interno se abastece de narrativa poética e aqui se encerra minha liberdade: o meu propósito fundado na educação do meu próprio afeto para assim coordenar as ações que regem minha vida sem fraquejar - e viver. 

A guerra que na minha infância tão distante e tão dura hoje ainda dura e tão próxima nas mães que enterram seus filhos, nos homens que procuram seus mortos sob os escombros de onde se era o lar e do que se sobra da humanidade, sepultados -  e quando ainda se consolam, abraçam e oram pelos seus mártires - a força da fé.

Me considero uma mulher covarde e na minha covardia e em meu ímpeto de violência compreendo que a razão é pequena parte do meu subjetivo, que necessita ser criada, educada e fortalecida tal qual criança pequena - e que esta mesma razão, como objetivo, se torna instrumento de educação de meus afetos e me faz acreditar e crer - a convicção de que haverá ainda coisas belas. 

Como estou aqui, o outro está lá, como eu: de carne, sangue e lágrimas, e chora, sente medo, se rebela, aceita e entrega. E não se indignar, é também uma forma de morte pessoal, se mata a humanidade e a sepulta em vala comum com o horror e a covardia. 

Por favor Deus, exista. E seja justo.  


Se abateu sobre mim há cerca de um ano a iminência do nada: não era nada, não significava nada, nada realizara, nada pretendia, e sendo eu um nada havia parido duas crianças, concluído uma graduação, amado minha família, estabelecido amigos, escrito os mais belos poemas que havia lido, apreciado a comida e a gente, existido e criado meu próprio universo onde reinava mortificando meu espírito no álcool e em desejos infantis não racionalizados, expressados em choro e solidão - autodepreciativa e psicótica, delegada a proletarização de minha subjetividade, naufragada em um oceano imposto de trabalho e consumo insaciáveis e deletérios, ao qual sucumbem os vínculos afetivos, a criatividade, o amor e assim - a vida. 

Então novamente ela veio: com sua foice, e a vida  que me usurpara: - "vê que o corpo cessa, mas o espírito perdura? não no mundo que não pára: a fábrica que ainda elimina seus gases tóxicos, o veneno que mata a terra e contamina rios, a comida cancerígena, a vida que nada vale - mas acesa na memória do amor fraterno e a lembrança saudosa da pessoa que genuinamente amou -  e revoltada, perplexa, incrédula ela se assenta: a consciência que somos eternos e que eu, a morte, não sou nada -  pelo contrário:  comprovo de que o erro não é o ser, mas o todo como está dado, pois não liberto e não trago alívio."

A incógnita do saber tem assombrado meu sono e desperta percebi que haverá de ser assim: preciso crer, pois não crendo eu mesma me tripudio, alimento um fantasma impostor em meu espírito que questiona todas minhas crenças me abatendo o mal - me acamo em uma mulher delegada as funções estabelecidas pelo patriarcado - anestesiada em minha função doméstica, esquecida do espírito de ser/existir e mal amo, mal falo, mal desejo, a depressão - nascida do capital e dada como condição natural do homem pós-moderno - melancólico, delirante de punição, suicida - o novo "normal". 

O outro, que também eu, se doente e faminto, impossibilitado e incapacitado, angustia-me a vivência em sua totalidade pois o peso da meritocracia fraudulenta em nossos ombros que nos impõe a mentira como verdade e nos rouba a crença minando o espírito e subjugando nossos corpos ao trabalho compulsório e infindável e se fraqueja a carne nos escarra em nossa cara um "Tio Sam" faminto de carne e espírito: "fraco! incapaz!" e nos puxa as partes muito bem específicas em engendrada roda de moer gente e espírito em que pendura as cordas, dá os nós, se coloca o pescoço e dá o empurrão que finda a vida e depois delega a morte ao próprio homem, a vítima, superexplorado, consumido, raquítico de justiça e domínio - o chute no cachorro morto.

Tenho exercitado vivenciar a vida como um exercício de fé professada - definido bem o rumo, na escolha da rota tenho me desparamentado dessa lavagem que me insensibilizou ao outro: quero estar ao lado dos oprimidos, dos rejeitados, dos derrotados. Quero compartilhar o pão e ajudar a curar feridas. Quero dialogar com afeto e equilíbrio. Tenho me espelhado em Cristo. Quero a justiça divina, a comunidade entre os homens, a insurreição de nós.


Havia fecundado o medo em meu ventre - as inseguranças oriundas de ser mulher: eu, fêmea, a quem filhos havia gerado, meu útero desocupado, um ser não compreendido - perdoada e esquecida por homens a quem havia idolatrado (como criança a que ama os pais) e depois trespassada como navalhas de fino corte - silêncios, lonjuras, insônias superadas em licores de açaí... Gestava por dias ininterruptos a ideia de seu passado: a quem havia amado, as dores, o fuxico da vida que levara com constrangido orgulho de quem carregava o brio masculino de quem a tudo se permitiu, a lembrança etílica das noites que com beleza e encanto tornara poética o absurdo do caos, a lascívia de amores carnais onde encontrava seu gozo - um respiro, um minuto - le petit mort. Misericordiosamente me remiti das culpas: eu, que carrego a alcunha de outros amores, que em minha genitália provo gozo e ditam censura - minhas células que em regozijo golfam essas palavras que me atravessavam a garganta numa tarde ensolarada na pacatez do cerrado: um parto empelicado - feio e milagroso, maduro como um feto recoberto pelo vérnix caseoso - uma membrana protetora, fétida, dúbia, como a mim compreendi ser. Feia e bonita - em incompatibilidade - como a toda mulher que ama. Eu não sei explicar, mas sei compreender. Nasci.

fui uma criadora de galinhas quando era criança - comprava os pintos pequenos em lojas de produtos agrícolas, amarelos de penugem empilhados aos montes dentro de pequenas gaiolas iluminadas por amarelas luzes incandescentes incessantes,  escolhidos ao acaso por um par de mãos pequenas - predestinados ao enjaulamento - criaturinhas salvas por uma pequena eu criança que os alimentava depois em casa com a própria mão e suportava feliz as broncas maternas de sujeira e bostas de galinha pela casa de minha própria mãe exausta em sua jornada de mulher solitária - porém me sentia amada, e amada me sentindo tudo tolerava até o dia que chegasse o sacrifício: pescoços degolados posteriormente servidos em panelas impecavelmente ariadas em terças feiras entediadas

a mesma garganta que previamente chorava a morte de algo semelhante a um filho depois mastigava a carne branca desinteressada olhando desenhos multicoloridos na televisão para a tarde pegar as moedas e  sair para a rua para aquisição de um novo bicho a quem destinasse meu afeto maternal 

lembro agora da última galinha que havia criado, andava pela casa seguindo meus passos, adotara um balde de terra onde botava seus ovos, respondia aos meus chamados e gostava de se aninhar sobre minhas pernas entrelaçadas, quando morreu esta (de morte natural) não permiti que servisse a fome de meus pais, e foi a primeira vez que experimentei o luto, tendo chorado por uma tarde e uma noite seguidas e depois dela nunca mais tive outro pinto

lembro de quando pela primeira vez acompanhei um velório familiar - um tio-avô que estava presente ocasionalmente nos almoços de família, dado aos prazeres do álcool uma vez havia roubado o pastor alemão de minha avó para prejudicar o dono de um bar onde costumava dar trabalho e tendo feito dívida não havia conseguido outra dose - jazia pálido e narigudo em sua cama de madeira na sala de estar da casa pobre de sua irmã, minha avó, que chorava a perda inconsolada do irmão que tanto amara - não compreendi o sentimento, e no quintal de casa o mesmo cachorro a quem ofendera o dono do bar ousou de tentar morder meus calcanhares - senti medo e corri, mas não incomodei meus pais com meu choro tendo o guardado dentro do peito - me senti emocionar com o coração acelerado e foi a primeira vez que me lembro de ter silenciado meu próprio sofrimento 

lembro quando morreu meu pai, já aos cuidados paliativos na casa de meus avós passava os dias deitado em sua cama hospitalar, emagrecido, gigante como um urso, se confundia em sua demência cancerígena e não reconhecia mais seus próprios pais, porém me sorrira ao adentrar o quarto como se me lembrasse, me abençoou e o beijei a testa pálida, saí para a rua com alguns amigos e pela manhã a ausência que perdura então até o infinito do hoje e agora

penso nas vidas ceifadas e nas famílias a quem foi retirado o direito do adeus, sepultados corpos de almas os quais os últimos olhares trocaram-se com desconhecidos mascarados e cansados seres humanos, desfeitos por líderes gananciosos e irrecuperáveis em seus desejos infantis, perversos manipuladores da morte que se fazem de deuses - esquizofrênicos e hostis 

penso na multiplicidade do comportamento negacionista dentro de lares quebrados, pessoas infelizes sem perspectiva de liberdade, reféns de suas próprias vaidades institucionalizadas, sobrepostas a própria consciência, fanáticos reprodutores do discurso de morte que assola a própria porta de suas casas, e essa, a morte, a que tudo assiste, tudo vê, perplexa e feliz em sua completude a ceifar a esperança, humanidade, sobriedade e consciência  de nossos dias, vislumbrando deslumbrada seus próprios pintos amontoados uns sobre os outros, com sua foice estendida, não ao acaso, a nos degolar a esperança e alegria

não choro mais. 

 sinto falta de algum vício. algo que me justificasse frente a ousadia do povo - aquele ridículo bonito, fraquezas gritadas, o erro cometido. diriam em minhas costas em delírio: - pobre coitada, são os hábitos! - e eu aos trapos, dentes tortos, hálito cetônico, extasiada e divertida com os olhos insaciados, inerte ao próprio ego, analisada e estuprada em meu íntimo. defeitos e imperfeições repetidos em várias línguas onde já haveriam passado a minha e outros tantos braços que entrelaçados em meu tronco me arrastariam e puxariam meus cabelos e cuspiriam em minha cara. o álcool, as drogas, o amor, essa gente toda patética que se norteia pelo vago, limita o horizonte a uma análise pessoal naufragada de preconceito e exterioriza a maldade de seus espíritos de porcos tal qual desprezo nos dá a mãe da criança grande que ainda permite o bico. o vício da língua maldita que tudo pragueja, que rogam a Deus o castigo divino e a este mesmo Deus puniram com a cruz e trazem as mãos sujas de sangue de gente e bicho. e eu, me encontrando aqui, nesse lugar que não me reconheço, planejando seu afeto em meu tempo, estilhaçadas horas corridas, que voam, e passam, e confundem meus sentidos com esse futuro que quando vejo, já se foi... sem fim.

 naturalize na linguagem o amor que transcende as esferas do espaço e do tempo, o senso de justiça que coabita em nosso peito tal qual a fome que avassala o espírito e compreenda: são partes da mesma coisa - que a fome matada apenas é passo dado para o olhar crítico a quem ainda dela padece. 

lute. grite. não tolere. 

a ideia que permeia a carne frágil desse receptáculo gerado por minha mãe, que também é a sua, e eternizada no mundo físico pela força da cultura, a consciência e a beleza ilustradas por uma criança em que tudo crê e vislumbra o pouco de mar em seu copo de água - lição de fé. coragem. virtude.

rebele-se! veja que não existem outros - somos um só - que a inquietude é o estado natural do espírito e a palavra apenas instrumento de linguagem que mais aprisiona do que liberta e o indizível aflige a alma e assim todo homem saberá o que é ser mãe se ecoar sua poesia - gestar e parir - a metafísica de si.

te compreenda como algo eterno - que és - e que o único mistério possível seja somente a própria vida -  pra-além de si.

o cansaço que ampara o ego

da ferida que geme nas esquinas

em que tropeças nos cantos cimentados

pedindo perdão aos postes

duplicados em suas vistas

o cheiro do álcool

o amarelo do tabaco 

a azia 

a náusea que alarma o desfecho

do beijo no asfalto

entrelaçado nos braços

de sua boêmia


 sinto falta de algum vício. algo que me justificasse frente a ousadia do povo - aquele ridículo bonito, fraquezas gritadas, o erro cometido. diriam em minhas costas em delírio: - pobre coitada, são os hábitos! - e eu aos trapos, dentes tortos, hálito cetônico, extasiada e divertida com os olhos insaciados, inerte ao próprio ego, analisada e estuprada em meu íntimo. defeitos e imperfeições repetidos em várias línguas onde já haveriam passado a minha e outros tantos braços que entrelaçados em meu tronco me arrastariam e puxariam meus cabelos e cuspiriam em minha cara. o álcool, as drogas, o amor, essa gente toda patética que se norteia pelo vago, limita o horizonte a uma análise pessoal naufragada de preconceito e exterioriza a maldade de seus espíritos de porcos tal qual desprezo nos dá a mãe da criança grande que ainda permite o bico. o vício da língua maldita que tudo pragueja, que rogam a Deus o castigo divino e a este mesmo Deus puniram com a cruz e trazem as mãos sujas de sangue de gente e bicho. e eu, me encontrando aqui, nesse lugar que não me reconheço, planejando seu afeto em meu tempo, estilhaçadas horas corridas, que voam, e passam, e confundem meus sentidos com esse futuro que quando vejo, já se foi... sem fim.

dia desses esbarrei em meu sentimento exprimido por outra pessoa - a inocência de minha egocentricidade fez-me chorar a gargalhadas tal qual hiena: com raiva, inveja, carnívora de mim. lancei o olhar pesado sobre este outro - o sangue em suas veias, o pelo recobrindo aquele corpo, a rima de uma boca fechada que reverberaba em seus olhos a mim. - como pode? como se atreve invadir este espaço que somente meu, deitar-se em minha cama que somente minha, desnudo tal como nasceu? - e compreendi. da carne irrigada pelo sangue, os pulmões repletos de ar, os intestinos cheios de merda. o contraditório da existência: que o que nos compõe são os mesmos átomos e o que nos separa é a mesma mente sofrida, orgulhosa, vaidosa, carente de afeto que apropriada de orgulho confunde o amor com posse. e domina, maltrata, judia. e se afoga em mágoa engasgada de quem deveria ter sido e não foi - ofendido desde o berço e abandonado a própria sorte pelos anos que agora passam como o trem que sai da estação usando do remorso como um último apelo a dignidade de uma vida que se esvai em inquietação.

te acalma e ama.
A loucura é cruel por trespassar por julgamentos alheios a nossa vontade - a anulação de si em desfavor do outro, o descumprimento de meu próprio regime interno em desarranjo ao que se dita normal em sociedade. Dona de mim enxergo nesse processo o reflexo imoral em que os corruptos se deleitam - ora se só há razão quando apontada a insanidade - e onde todos são amorais a moralidade se torna transtorno, patologia ou demência. Me reafirmo em minha própria voz, e canto, gargalho, falo a plenos pulmões, língua e dentes o rompante ar que transformo em voz e xingo enquanto me apontam vulgar enquanto mulher - histérica e vadia me pintam. Há muito já trago esses gritos emudecidos que me ensurdecem, minhas costas tortas do peso de erros que não cometi, a ausência da liberdade submetida às vontades de outrem enquanto cozinho, lavo e crio os filhos do mundo, futuros imperadores hostis e mimados pervertidos com seus chicotes violentos. E eu, órfã da terra, bruxa mística e louca, subjugada na ignorância da normalidade cruel dos que nada fazem e tudo possuem assistindo esse espetáculo de desrazão ad eternum. Só há ordem na loucura.
Apolo se apresentara a mim na luz da verdade - trazia em suas mãos a lisergia dos mundos e a depositou em minha língua: o amargor dos tempos em pequena dose de esperança que me despertara. Ascendemos ao Olimpo - morada de seus irmãos - gigantes deuses que assentavam em montanhas sob a crosta terrestre e bebiam vinhos como oceanos e mordiam as carnes como néctares das musas que ali dançavam. Eu miúda e estática frente a sua juventude e graça, a verborragia mandatária de quem me absolvia os pecados ainda não trajados, a língua profética que me ditava o destino finito - as mãos de mil dedos que me elevaram a esse estado de graça e razão, fazendo-me acreditar que ali pertencia... e num sobressalto, dona de mim, silenciei os lábios que verbalizavam a razão dos mundos com os meus: boca de uma mortal filha de homens comuns que nada possuía e ali o vi: num milésimo de segundo, a fragilidade divina num reflexo pupilar desorientado, eu - sua ambrosia terrena, que não traria cura nenhuma, apenas a morte do infinito solitário de quem dá um passo em direção a tornar-se homem repleto de pureza e exorcizado de demônios racionalistas. Meu pequeno poema num relampejo de um olhar e de uma boca que somente comia pão e bebia água.
ainda habita em mim essa criança de olhos firmes - e aí está: a beira da fogueira tardei a enfrentar seu rosto. a candura vem da não interpretação da morte - a não ciência da finitude dos corpos - o infinito honesto de gozo e clareza de sentimentos. /a raiva, o ódio, os desprazeres, o choro gritado./ os anos me tornaram melancólico e nada do que sinto é completo. as incertezas que me norteiam, a falta que me abastece, o medo que me motiva. e ela me olha de volta: onde está? que hora se iniciou essa carnificina? de onde vieram estes métodos? me envergonho pela criança que fui - deflorada em um adulto miserável que em tudo crê e se abastece de seus próprios falsos paradoxos. me perdoe, meu menino - é mais fácil acreditar em meus próprios limites. incendeio.
Despenquei ao chão. Não compreendi muito bem a atração entre seu corpo e o meu - a paixão tem me ensinado que não é necessária uma força inicial: esses centros de massa em comum se colidiriam em resposta a nossa gravitação universal. E seu calor escoado em milhares de gotículas em meu ventre e colo e lábios, mostrando-me que não só a terra puxa a maçã, veja bem, meu bem, que o amor é uma arte, como compor uma boa melodia ou dar cura a um enfermo - e assim me ergue, me nomeia Oxum e me orbita, ora me pegando em seus braços, ora dizendo adeus, que o amor é e há de ser como a gravidade, toda essa distância traduzida no presente de se reencontrar.
O sol repousa estridente no horizonte - o cheiro verde dos meus pés que teimam em pisar essa grama úmida. Meu coração morno que já foi José e Maria, e essas minhas partículas que se agitam em uma doce harmonia. Meu milagre é ainda assim, apesar de tudo e das coisas, maravilhar-me com o que é natural, a luz da ciência encontrar-me com Deus e nele fitar olhos de homem - crê minha menina - a natureza nos rege - o tempo nos aplaca - a fé nos imortaliza.

NIRVANA


Tenho estado embriagada pelo cheiro do café da manhã: o calor morno do pão fresco posto na mesa em meu rosto ainda deitada na cama, o cheiro do café que exala teus poros, suco doce de fruta que mora em sua língua. Meus sentidos atentos a seus estímulos - papilas gustativas em minhas costas e despertar num clarão de serenidade que me fustiga os olhos. Eles todos embaralhados me confundindo os cheiros em seus gostos e meus olhos em seus toques, e eu ali... miúda, sofrida, danada, atenta as gentilezas que leva e trás na sua candura e pureza, me lambendo as feridas de outrora, livre de anseios e desejos me ensina: conhece-te a ti mesmo, acalma o coração e abraça, que meus átomos são teus átomos, então se de todo puro é, de toda pura sou.

o irmão de Eros

Abracei-me com Caos em noite gelada - sempre soube que ele não era o excesso: era o vazio. E como todos nós - mal julgado e interpretado ascendera sob pedaços estigmatizados que lhe impuseram. Não falava - não sorria - não lhe vertia lágrima em face alguma, ali não havia nada. O era antes de tudo, sobre os ombros o peso dos sexos e gritos, e choros, e guerras, e filhos sem mães que não havia gerado. Carregava-nos todos sobre seu nada. Não havia nada, meu Deus... Esta terra sem forma e vazia. As trevas sobre o abismo. Onde pairava o espírito de Deus? Pai e Mãe de tudo o que haveria de vir após a ausência, e toda a mãe de filhos, aceita o que lhe é imposto. A única palavra que me proferiu fora esta: Eu sou- Eu serei. Permanece menina, fecha teus olhos e veja: o caos sempre provém do amor.

carta para quando cecília puder compreender

Quando você nasceu havia uma confusão de barulhos ao redor. Seu pai se afastou e retornou sem você - eu não me preocupei. Naquele momento já entendi a primeira lição que a maternidade me trouxe: mãe sabe esperar. O que ele me disse naquele turbilhão de sensações era que você era linda - hoje ainda me surpreendo com sua beleza. Me trouxeram você... Um nariz, uma boca aberta, choro alto, amigos ao redor e mesmo assim era só você. Tentava juntar todas as peças que via para formar seu rosto com certa dificuldade, deixei de lado: teria a vida toda para isso - te abençoei. Minha hóspede partia e deixava em mim um quarto bagunçado. Nesse primeiro vazio momentâneo lembrei de papai. Filha, você não terá a oportunidade de conhecer seu avô nesta vida, mas acima de tudo ele era um homem que amava os filhos. Essa foi a minha segunda lição: compreendi meu pai. O vazio que você deixava em mim potencializou-se com a falta que ele fará em sua vida e frente à isso, chorei. Me fecharam a barriga e me expandiu o coração. Visualizei minha terceira lição: nossos filhos não nos abandonam o corpo - mudam de lugar. Peço sabedoria para que saiba orientar seus passos nos caminhos que trilhar. Rezo para que seja uma pessoa boa. Seja boa, meu amor... Não permita que a nebulosidade do mundo e os corações partidos que ainda haverão de ocorrer endureçam seu coração. Minha dádiva é te ver crescendo. E quando grande você for, perdoa mamãe pelos erros cometidos. Todo mundo erra, compreenda isso. O mundo é um bom lugar, é o nosso lugar, aproveite o passeio.
Eu amo você

RETORNO PARA CASA


Ao todo já morri cinco vezes. Talvez ache curioso este fado - porém, este corpo ainda poupado da velhice há muito já não se lembra da criança que outrora foi. Morri cinco vezes e mesmo que não note nunca me recuperei totalmente - sigo aos pedaços o que meus tecidos tentam em vão recuperar: aquela parte de nós que quando se vai, comprova a irreversibilidade da morte, do que apenas deixa de ser o que era.
A primeira vez que morri soube que não era extensão de minha mãe. Brotaram-me dentes nas gengivas e ao sinal da menor mordida em seu seio sentou-me o tapa nas nádegas: "menina má!". Devo ter chorado, não me lembro. Hoje choro frente a perspectiva de descobrir-se tão só no universo.
A segunda vez que morri me afoguei. Havia certa ideia não muito trabalhada sobre acreditar na invencibilidade que meu corpo acreditava possuir... Sempre fui pouco exposta aos perigos que não incluíssem subir em árvore ou pequenas covas no jardim. A falta de ar e o fogo que adentrou os pulmões naquele pequeno mergulho me mostraram - dolorosamente - quão frágil o corpo é.
A terceira vez que morri foi quando me apaixonei. Neste ponto sou obrigada a discordar dos grandes filósofos: libido é pulsão de morte. Uma procura insaciável por algo que não me lembro ter perdido.
A quarta vez que morri foi quando perdi meu pai. Castraram-me as palavras. Ainda não me soa correta a vida sem ele. Ainda aguardo seu retorno, e aqui, de forma singela, a morte mostrou-se de maneira mais cruel: leva um pedaço que até então você não sabia possuir - e logo após, mata-te pela última vez: onde incapaz de continuar, te dá forças, e você compreende que apesar de toda ela, de tudo isso, está vivo.

lambari

Não me reclame os versos que não fiz. Houve um tempo que aqui era correnteza de lágrima e em meu leito rochoso escoavam emoções, tais quais fez correr em decrescência seu si lá mi. Tudo que era encanto trazia encravada a apatia que o tempo impõe em sua majestosa vaidade nos ensinando que não, nada é eterno. E a finitude de tudo cavou fundo e fez-se lago nesta menina - que nos dias atuais ora transborda, vez ou outra seca, dá vida e a tira, sendo pelo tempo que durar escara cravada em pedra de onde brota água doce de beber.

oração

A gente morre - todo dia. Quando apático aos olhos alheios faz-se piada do sofrimento imposto e uma mão estendida é sinônimo de rosto virado que faz às vezes de quem "não viu", "não sabe". Dessa gente santa que se cega às próprias custas frente aos pequenos impropérios cometidos, mas que munidos de punho e sangue ferozmente dilaceram a carne fraca e ruminam a cólera que reverbera nossos dias. Morre-se na cruz apedrejada e no pecador não bem vindo nos reinos do céu. Pois ali há de ser um banheiro impecável de azulejos e cristais, e deus, este pobre coitado, criatura fadada a limpar para sempre e todo o sempre a oratória "do bem" que regurgita nos nossos tempos. Se possível de uniforme, claro. Amém.

preateritus.a.um

Havia promessa feita de que me comporias todas as rimas que ainda não houvessem neste mundo... veja só, como são doces os sonhos de menina: cândura virgem frente à vividez que cruelmente os anos - e o mundo, e as cousas, e as gentes - haviam retalhado em seu peito, onde logo aprenderia que nunca éramos somente nós toda aquela bagunça de pronomes pessoais. Ansiosa respirava o futuro do nosso pretérito, meu mau português não me permitira uma boa conjugação verbal e você, meu professor, oratória graduada ensinava-me imperativo: compõe tu! E via em mim o que não via em ti - flor que havia tardado em seu florescer, era eu enquanto você já havia sido.
Nunca abandonou-me o tempo verbal: hoje vivo o presente mais que indicativo da ação que é tomar a própria vida pela mão e com ela enamorar-se. E uma coisa te digo: componho eu mesma as mais belas canções que já ouvi.
Do latim amor, era seu nome próprio.
Debutava-me as vontades que trazia, 
me fazendo sua menina
(outrora tola e distante) 
que após construção deste ninho
suas penas macias
- uma por uma -
fez pouso em minha vida.
Cabelos louros,
filho de Vênus,
faça de mim Psiquê;
Porque te amo?
Porque me permites...
Eu não consigo ir embora de mim a pé:
meus corredores coloridos com palavras
a altura inapropriada que este vinho me permite
- mas eu vou - digo
- já foi? - perguntas
- ainda não. - respondo
- você um dia volta? - tu
- não. você um dia vens? 
Se cruzares meu caminho,
e na direção de que vim, tu for
cata-me os sonhos não vividos
recicla as anedotas descartadas
tempera as palavras descuidadas.
Que neste mundo nenhuma oportunidade é perdida e
nenhum erro incorrigível.

eu quero entender

Asfixia-me os acordes que não aprendi
sede de música que em vida é como carvalho [já vistes um?]
sabe a harmonia que nunca entendi?
pula oitavas em direção a tua barriga
umbigo
desconheço de timbres e estremeço a cada nova vibração sonora
você em clave de fá
desatento ao meu bem querer
teus dedos em uníssono com minha palpitação
coração em pentagrama
eu sustenido
tu bemol
nessa escala temperada
pinga-me azeite
e beba.

crise simulada

Respeitável, público!
Na estréia de hoje convido você - senhora, e você - pimpolho, a experimentar o recomeço de uma nova era! Pois veja, meu caro, que nada é passível de ser novo sem já ter existido antes. Que nenhum sonho é sonhado apenas uma vez e - até hoje - esta humilde que vos fala nunca viu fé que não foi outrora questionada.
Que maravilhosa juventude!
Reinventa-se nos velhos hábitos já gastados por seus avós e permite-se a deliciosa chegada dos mesmos erros já vividos por seus pais. Nascem e morrem na deliciosa alvorada do antigo - e que gozo!
Agora entenda que o ritual antecedente ao advento deste mausoléu inveterado sempre é carregado de promessas de grandes alvoradas, nascimentos e assim - vida! - pois tudo o que é novo é supostamente belo, e na procura de desfazermos do que já existe apenas trocamos aquela roupa de linhas simétricas por algo como o boleado das curvas que gera o prazer inocente do "novo". Ai, o assimétrico!
E como no "antes", este "novo" que ressurge e suas incoerências obsoletas refletem nosso mais belo espírito de ferramenta institucionalizada por - quem? sei lá. Mas nunca fui eu toda essa demolição de mim mesma - para, no fim, voltar a ser o que era.

VIDA NOTURNA

Tudo o que escrevo é rascunho descartado em papel de pão.
Veja só: certo dia caminhava pelas ruas numa madrugada nem quente e nem fria, de nuvens esparsas - para conhecimento do temperamento daquela noite e enriquecimento da descrição - quando cheguei a uma avenida dessas largas e onde as cidades, num ato de gentileza, diminuem a quantidade de edifícios e possibilitam uma melhor visualização dos céus. Meu passo não muito apressado, levemente etílico, estarreceu-se com a visão e travaram-me os pés dançantes no asfalto e eu - num sentimento de pequenitude que somente os que em momentos de susceptibilidade alcoólica e coração um tanto comovidos demais entenderão, apiedei-me de mim mesma e de minha nadisse frente à tão belo corpo celeste, confirmação de que o paraíso haveria mesmo de existir e que o inferno nada mais é que esta vida medíocre que segue na terra. Ah, o infinito, o amor, deus, tudo era real frente à tão bela paisagem. Minha moon, nossa Lua, satélite natural da terra, único, firmamento e paraíso. E então decidi. Era preciso compartilhar aquele momento com os que amava. O mundo precisava saber que ainda havia esperanças. Saquei o celular e fotografei, sagaz, impetuosa e destemida. E caro leitor, caso você já tenha se encontrado num momento desses, de extrema intimidade com o universo e com o místico entenderá completamente o que se sucedeu nos momentos seguintes quando conferi tal fotografia. Minha Lua impetuosa tornara-se apenas um borrão branco amarelado numa tela preta disforme. E rapidamente dissipou-me as emoções que outrora alimentava. A sobriedade atingiu-me embrulhando um estômago que nada carregava e frente à tão triste conclusão vomitei sabe-se-la-o-que no meio-fio que não se distanciava. Ora se a vida não é isso: maus reflexos de grandiosas coisas. E então entendi que nenhuma experiência pode ser realmente trespassada. Todos precisam vivê-la, e revivê-la, e sentí-la e sê-la... Os olhos vêem, a boca fala, mas somente o coração, e este só, sente. E assim, vivemos.
"O essencial é invísivel para os olhos".

distanásia

O brilho de meus olhos já não eram meus
- refletiam-se nos teus.
E quando apagaram-se os seus
- era eu noite,
noite e dia.

Yemanjá

Nasci mulher - cínica em minha natureza. Ventre fértil que aos homens deduz algum tipo de fraqueza que não reconheço em meus braços. Eu - convicta dadeira ou virgem menina - duas em todas as vertentes, mas o que eu estou falando? Sou mil e uma e alguma há de agradar-te, mas não me perturbaria seu ódio, desde que honesto. Boca aberta sempre e minhas palavras nem sempre me traduzem muito bem: uma hora serei mãe e alimentarei teus filhos, doação eterna, danação materna. E no momento seguinte, ai meu deus! São tantos os filhos no mundo! dá licença, e os cabelos decoraria com fita pra na rua ter brilho de estrela - carreira de artista - rosto de menina. Minha mente, meu caro, há de exercer esse fascínio feminino sobre seu corpo e teu desejo risca-me em rajas de olhares furtados quando faço de conta que não vejo. E logo em seguida haverá de dar no saco toda essa jogatina e então vai pra casa e descansa, me esqueça até amanhã. Bruta, Iracema, meus dedos e meus quadris - minha força é meu conjunto. Sua mente perdida, que apesar de não mais me querer, há de amanhecer faminta e em meus braços procurará trégua. E me come, me bate, me consome a vida - deixa em mim todo esse sofrimento que n'outra hora será alegria. E há também todos estes outros que virão e que após fazer casa - sala - festa, embora irão e eu - esquecimento. Haverá alguém a topar este namoro e em mim provar de todas as traições, meus merengues e seios fartos. E recomeço, faço novo, de novo, minha parição afroditiana que nesse mundo faz novela, simula, ama e abandona à própria sorte. Eu sou mulher, saravá! Adeus e olá.

Águia

Sobrevoô teu céu em círculos - em mim tantos pontos internos que resultam nesse ciclo. Avisto de longe tua noite e teu dia, incansável e sedenta rapino. A delicadeza de tua carne fraca frente minhas garras - e minha covardia bruta frente à dois olhos de menino. Qual a distância ao nosso centro? A sucessão de meus atos não leva a nenhuma constante - reconheço minhas falhas - a cada novo voô, não tarda a cair-me as penas e desnuda tocar o chão. A realidade carnívora que tema em chegar a todos nós e ferir-nos a pele. Mas há este pedaço de mim que já é teu e então exijo que o tome! Cessa minha caça e seja pouso e ninho - seja em mim o que serei em ti, insígnia que perdura em teu corpo o que há muito tempo levo em mim.

sobre crianças

Esqueço-me de minha finitude pelas manhãs e durmo tão próxima à morte todas as noites. O que trespassa ao longo do dia é aquela navalha afiada da mesmice diária - papéis carimbados, gente engravatada, ônibus lotado. Meus passos caminham pelos mesmos que outro alguém caminhava e na falta de emoção que o cansaço impõe apenas sigo conformada com a ideia de um bom par de chinelos. E era esta a bandeira que a vida adulta me pregava quando era apenas uma criança? O novo sempre parece atraente demais - e ainda acostumamos os olhos com o belo e esquecemos da gratidão frente à tudo que nos é dado, o novo dia e o alimento. Acredito que seja por isso que gostemos tanto de crianças: quando se cruza o olhar com uma renasce a candura que há muito não se nota no mundo aí fora.  Coração cansado ainda bate - e dilatando-se transborda.

Puta

Desnudava-se com a mesma facilidade das putas paulistas na augusta. Não que tivesse feito escola pra isso! jamé, rapá. Apenas apreciava o olho de cobiça gratuita que seu rico corpo despertava. E foram tantos olhos e línguas e mãos que a percorreram que num momento já não era ela – tornara-se livro de lágrimas de outrem que em seu peito, feito mãe, havia consolado sem saber uma palavra ou um afago de conforto. Crescera puta numa sociedade que a subjugara a mero buraco inerte de prazeres de terceiros que nela – para seu desentendimento – agora encontravam a paz do desabafar sem julgamentos, dessas conversas que se jogam fora, da raridade de dois olhos atentos. Com a mesma rapidez que tirava a roupa aprendeu que as pessoas abrem a alma – e este ser livre, que taxada puta por escolher amar, difamada por uma sociedade que não lhe incluía agora trajava o sofrimento de mil homens infelizes que em seu ventre retiravam suas máscaras, e na honestidade de um gozo encontravam forças pra continuar. Essa menina retirava do corpo tudo o que não lhe pertencia, e assim, era ela, somente ela, quer a chamassem vadia ou não. Puta ou não. Por ela, mulher. Aborto de um país que vira as costas – e joga as pedras .

duas estrelas

Minha binaridade me preocupa: ora sou dois olhos que vêem o mundo tão amarelo e bondoso, pra num tropico - bosta! perde-se tudo na boca suja que mal-diz a vida, o tempo seco e a vizinha. Minha maleficência caminha toda enfeitada em seus ruminares e falácias que as vezes nem nota a benevolência que passa distraída e sem expectativas num simples "bom dia" que me esqueço de retribuir. E eu, centro de massa comum desses dois corpos celestes que em mim orbitam, ora boa, ora má, apenas antevejo a colisão que logo se dará: e então, meu amigo, serei estrela cadente - iluminando o céu do que é bom e do que é ruim, no espetáculo da humanidade maniqueísta que rondam esses dias.

Laranja


Havia algo no pôr do sol que repousava sobre a cidade... minh'alma ficando pra trás no laranja que cobria o lugar onde meu coração havia ficado. Despedi-me de mim sem adeus e sem lágrimas, não era a primeira e nem a última vez, porém a mais triste. Este corpo que a tempo já se habituara a despedaçado ficar espalhado em casas e n'outras estórias agora perdia o próprio coração, como pode ver. Havia o deixado sem notar e assim, partindo sem pretensões de voltar, não pude recuperá-lo. Há talvez algo em mim que o faça de propósito: entrego-me demais. E notando este erro conscientemente não o corrijo. Lido com tudo que me desperta a emoção apenas com o silêncio de um par de olhos baixos e o grito mudo guardado no peito deste coração que me alardeava demais. Sendo assim talvez não o tenha apenas perdido ou esquecido inconscientemente, mas sim, quem sabe, talvez, o abandonado a própria sorte, no relento de algum quintal, ou desprotegido em qualquer par de mãos, para que uma menina, essa menina, possa enfim respirar. 

Eu sinto muito, mas eu sinto demais.

[travessão]:

Não sou de pouca conversa - falo muita bobagem - mas nunca fui de me abrir assim com os outros. Me parece insensato demais ocupar ouvidos alheios com as dificuldades que eu mesma não consigo enfrentar. Costumo escrever não como quem o faz pra fora - mas sim pra dentro. Rumino cada sílaba o tempo todo - volto, retorno, apago, não me entendo, repito. Me prende o antagonismo da vida - a sobremesa após o almoço - um bisneto no colo da avó - essas brincadeiras irônicas que a nós são impostas dia-a-dia. Acho tudo muito dolorido - e de tão triste me parece que a vida é bonita. Ou ela é bonita demais e por isso eu seja triste... Enfim, apenas não sei. Entende minha dificuldade? Eu não sou boa de prosa, mas eu não falo pouco. Ocupo esse vazio com intenções de felicidade e assim me esqueço a todo momento: a vida é difícil. E é uma só. E isso que me magoa... O oposto de viver é morrer, e apenas nesse ponto, onde tudo é dois, me parecem que as pessoas vivem meio mortas, um algo só.

Adeus

Então era o adeus. Quantas formas de adeus conhecera? Havia enterrado um cão certa vez na infância - porém não se lembrava do sentimento de peito escavado que ali agora presenciava. Quantos amigos havia deixado pra trás? A sutileza do tempo é dispersar o que amamos lentamente - quando se vê já é o fim. E de repente tomada assim - gesto profano de um coração duro que apenas dizia não amar mais. Crescera nessa mentira hollywoodiana de que o amor é suficiente -porém não o era. Desacreditara em deus ainda na adolescência - o coração bondoso não a permitira. Se entregou ao destino desde pequena e este esbofeteava-lhe a cara sem pena. Cresça, infeliz! Vê se aprende: adeus é o tchau mais triste que existe.

me afoguei

Surpreendi-me inicialmente - seu movimento silencioso ao lado de meu esqueleto desajeitado - na escola não nos ensinam nada sobre o amor e de repente me foi nítido que as equações não me ajudariam em nada no mundo ali fora. O contato de seu corpo no meu me afastou - por mais que o quisesse perto - eu uma pobre criança, que não sabia guardar segredos, não sabia pintar os lábios, sequer possuía bonitas calcinhas - criaturinha termoneutra e sem graça. Encurralou-me contra a parede - dali retirei algo da ciência: o que se seguiu com certeza diriam-me os professores ser apnéia. Prendi a respiração, e não compreendia como um corpo sem oxigênio poderia acelerar tanto um coração. Colou seus lábios no meu e prensou meu corpo contra o próprio um tanto sedento demais - e esta criança sem fôlego, sem jeito, náufraga num mar de sensações no qual em nada conseguiria se apoiar. O que se seguiu foi inspiração intensa - água que adentrou meus pulmões - fogo que queimou meu corpo - e então, a morte surge pouco tempo depois. Me afoguei naqueles braços e assim, desejei nunca mais reviver. Na escola não nos ensinam estas coisas.

escrevo

Escrevo em defesa do silêncio estuprado - proparoxítonas gritadas à esmo - contra a rima de meus lábios cerrados. Escrevo a próprio punho a revolta que queima minha pele e se transfere ao barulho grafitado no papel - aqui nada se apaga, nada se perde, nada se é. Conjugo meus verbos em tempo errado - blasfemo contra o correto. Toda essa gente que me grita regra - à merda - eu escrevo. Eu não falo. Eu não digo. Eu não grito. Minha pausa é ponto final, meu grito exclamado, minhas dúvidas, incertezas - interrogo-me em tantos braços - e findo-me em reticências. Eu escrevo porque não sei compor.

dúbio

Hesito frente as partes que brigam dentro de mim. Este útero que grita o filho não gerado - essa jovem que carrega pulsão de morte no seio. A mulher que se achega no colo do amado - esta puta que entrega-se a qualquer galanteio [pois não sou - não sei]. Corre-me essa menina que se diverte na montanha-russa e levanta os braços sem medo - e a criança temerosa que se esconde frente ao brinquedo [eu não vou - me estarreço]. Perco-me nos caminhos traçados - esta parte estúpida de mim que geme o cansaço do descaso - a insignificância do eu - e chora, grita, baba e a outra - que apenas ri de meu desembaraço e coroa-se rainha do acaso - mãe de todos meus desejos. Este lado que me é cego - e este lado que apenas não vejo.

tato

Dos cinco sentidos era tato – o toque. Seus dedos em meu cabelo lembravam-me desavisado: “está viva, vê? Vai sem pressa, pequena. Segue seu caminho”. E talvez não soubesse que iria – ou que indo já não mais lhe pertenceria. Porém, fui. Soltei os dedos que carreavam minhas inseguranças para partir. Ali me despertou o primeiro sentido: era dor – ainda arde minha pele. Lá fora eram outros muitos que me confundiam a textura: uns tantos ásperos, outros tantos avelãs e enfim, um pêssego em minhas mãos. Aqui reconheci meu lugar – achei-me em seus dedos e minha pele era febre matada frente ao seu toque. Continuo sem pressa - minha propriocepção tomou seu corpo e já não me é desavisado seu lugar: pertence junto a mim. Aprendeu a partir e ainda assim, escolheu ficar. A vida inteira me levou pela mão, me subiu pelos braços, acabou-me na boca e a cuspo, engulo, digiro. Alimento-me do que se consome em mim e vivo.

reboco

Era um muro de reboco, mal-arranjado e displicente que norteava o inicio da minha rua. De longe o via: seus rabiscos coloridos da criançada que ali brincava - um raio de sol, um jogo da velha, diversas flores e borboletas coloridas num jardim infantil de maravilhosos rabiscos tortos. E assim, de longe, sabia que estava em casa. Meu descanso começava nas borboletinhas que insinuavam seu bater de asas - porém fixas no cimento cinza e sonso de um muro de casebre desajeitado, e ainda assim, lar de todos. Até que então, certo dia, achei um pedaço de giz no chão - pontinha de nada - cor de rosa, já toda gasta. Não resisti: gravei meu nome e o teu no muro que me mostrava o fim de meu caminho. E agora amanhecemos e entardecemos entrelaçados num rabisco mal-escrito de um muro que me lembra sempre: todos os dias retorno para casa. E meu descanso é em seus braços.

vulcano

Foi-se magma que escorreu-me peito abaixo - erupção. Poluiu-me os lábios de enxofre tal qual se fez inferno em meu leito. O diabo me atenta com doces palavras e passeamos meia hora por entre a lava, ele diz: - Vê o que me fustigaram? Vê o que vivo? Tudo acaba em fogo, e em fogo se consumirá. Passio-onis, minha menina, não significa nada além de sofrimento. E este foi meu pecado - amei demais. Eu apiedei-me de pobre criatura - condenação eterna na casa de Hades, a má-fama na língua dos filhos de Eva [corruptos, mentirosos, ladrões]. Todos filhos de Deus, perdidos em desencontros, angústias e sofrimento - o medo de não pertencer - as expectativas irreais e no fim, apenas pó da terra que tudo renegou. O pão que não matou a fome, a água que não supriu a sede, a fé que não pacificou a alma. E finalmente acordo - vulcão - ar que falta à dois pulmões sedentos. Tudo um sonho.

casa

Você não sabe, mas estes caminhos que trilhei, estas mãos que segurei, fizeram de mim lar. E sou sala de estar - festa que convida - amigos no sofá - sorriso que lhe ameniza as feridas de outrem. Eu sou cozinha - mão que alimenta - palavra que sustenta, prato feito de paz. Sou quarto - descanso do corpo, meus beijos espalhados neste rosto que comigo se deita, que na chance de ir - fica, e dorme. Sobe as escadas devagar e não bate na porta, entra aqui, desfaz as malas e minha casa é sua: venha quando quiser, parta quando decidir. Desfaça meus colares de miçanga e bagunce minha ordem, pois eu, eu sou casa - sou fixa e fico - não parto. E essas partidas, já aprendi, sempre deixam algo, e acrescentam mais um cômodo nessa casa.


cama

Não me apaixonei pelo seus olhos entreabertos de manhã que fajutos me beijavam os lábios. Não me convenci com os braços que me entrelaçaram e arrastaram para o banho quente e apertado - contra um abraço espreito à espera. Ignorei a sede que me matava frente à tua boca molhada. E relutei, mordi o lábio, cerrei os olhos, cruzei as pernas, fiz cara de brava. - Eu não me apaixono, rapaz. - E deito aqui do teu lado, abro minha boca - de lábios duros - e digo com essa voz que treme à cada movimento seu o que eu não me canso de dizer a cada palpitação minha: Não vá pra casa ou pra longe de mim, eu não me apaixono. Eu não me entrego. Eu não amo ninguém. Mas fica aqui.

Espera

A falta que me faz são suas coisas que não estão espalhadas pela minha casa. Seus pelos que não ficaram no meu sabonete. Aquele livro que nunca me emprestou. Minhas pupilas ainda reagem frente ao seu calor, e aquele meu disco de Francisco trava onde seu sangue misturava-se ao meu - coração medroso - que pára, não bate, sangra e se esconde frente a mínima possibilidade de felicidade [ou esquecimento]. A realidade bate a minha porta e avisa - vê este aperto? peito murcha, esvazia-se, tudo acaba. E assim lhe deixa (re)começar. Essa angústia que me causa tudo o que ainda não vivi - a sede do último beijo e o medo do primeiro passo - misturadas a falta que sua ausência deixou. Há café em minha xícara, tristeza em meus olhos, vontade em meus lábios e um sol que nasce - infinito em sua majestade - me relembrando a sorrir pela vida que se curva frente à minhas inverdades e chances desperdiçadas de me refazer destes pedaços que me caem pelo caminho. Trago cicatrizes de uma vida curta que a tudo se entrega e agarro-me ao meu amor por tudo. Porque é apenas isso: eu amo. E por amar, só falo bobagens. E espero sua volta no sofá da sala.

Clave de fá

Errei o ponto. Nunca foi final. Era sempre reticências *suspiros*, vírgulas *continuações*, exclamações *gozo*.

Errei o acorde.
Na execução simultânea, preferi as escalas *a doce harmonia do crescente*

Ah! Queria cantar o mundo em dó menor, ter timbre, voz! Saberão me entender os apaixonados... Os de mundo azul-marinho.

O por-do-sol é um soneto, um beijo sinfonia.


campo de batalha

Minha guerra é perdida. Sequer pertenço a esse campo lamacento de batalha no qual sujo meus pés descalços. E aqui estou: alvo fácil, peito descoberto, um círculo no meio da testa que grita - mate-me!, e agora regozija a dor prévia da perda de algo que na verdade nunca possuiu. Meu leito é puro sangue, vermelhas mãos e colo nos quais meu inimigo se lambuza. E eu sigo caminhando nesse campo minado, ora me paro – olho minha volta, suspiro, choro. Ora fecho os olhos e peço aos céus proteção divina – me ajude meu bom deus. Segure a mão de sua menina. 

Abro os braços

E corro de olhos fechados ao seu encalço.

janta

Ontem fui jantar fora, um desses restaurantes que colocam mesas à calçada. Escolhi o prato e sentei-me a esperar... Porta de universidade, corpos, carros, cadernos num vai-e-vem que me entorpeceu os sentidos. Na falta do que levar a boca - esqueci-me do refrigerante - meus olhos se embriagaram naquele começo de noite movimentado. Essas crianças correndo apressadas às suas aulas, eu ali, faminta de qualquer coisa, olhos atentos aos seus movimentos, no que então me surge os dois: os nomeei Cassandra e Apolo, não pelo apelo mitológico, imagine. Não sou dada a essas cafonices de demonstrar-me mais inteligente do que realmente sou, mas apenas para dar-lhes ares de maior apresentação artística do que realmente conseguiria demonstrar em outras nomeações. Eram os dois, Cassandra e Apolo, menino e menina, homem e mulher, Adão e Eva que caminhavam juntos, desconfortavelmente abraçados a beijar-se um ao outro. Ombros, bochechas, bocas, cabelos, mãos. Infindos beijos que alardearam a atenção dessa pobre escritora que aqui vos fala. E os segui até onde pude, com o coração morno pelo carinho que ali transbordava, esquecendo-me por um momento do narcisismo infantil que nos move rumo à essa (mal)dita necessária paixão eloquente. E naquele casal, agora apenas João e Maria, cercado de tantos que iam e viam sem lhes dar conta, perdidos em seus beijos e abraços e carinhos, vi o céu que se prega no percurso do amor, me dando conta de que a muito vivia apenas o inferno - e num susto: - Sua refeição, senhora. Cassandra e Apolo se foram, os perdi de vista. Lamentei a dureza do garçom, mas foi apenas mais uma dessas indelicadezas da vida. Comi, sorri e me retirei. Naquela noite sonhei que amava e amanheci feliz.

E eu lhe digo: adeus

Não me lembro o dia que você morreu. Sei que estava só, como me sinto desde então, quando soube que você não estava mais. Não me lembro se fui lágrimas, risos ou lamento. Mas me lembro da força desumana que meus músculos demonstraram ao afrontar um coração que não acreditava conseguir colocar-se em pé. Em especial trago um detalhe que ficou: era noite, como são os meus dias agora. E desde então, nunca fui tão forte...

Well, you cured my January blues

havia tua mão
-e a boca minha-
passeava apressado
em minha língua
(havia meu suspiro
e o seu arquejo)
essa febre que me toma
essa cama em que me deitas
desses olhos que não dizem
onde terminam estes dedos

manifesto

Aonde estão as mulheres de minha geração? Aonde estão as Janis com sua sinceridade construtiva, sua personalidade singular? As Clarices com seus fossos e seus segredos? Aonde estão as mulheres que precisam ser desvendadas, descobertas, desnudadas - e isso tudo a muito custo, muita luta! Vejo por todos os lados pequenas cópias múltiplas, milhares, de cabeças ocas e vestidos curtos. Aonde estão as Dilmas de nossa geração? As Elizabeths, as grandes rainhas donas de grandes exércitos, as grandes comandantes. Meu Deus! Aonde estão? Fridas, Evas, Tarsilas, Leilas, Anitas, Helenas, apareçam por piedade Divina! Pois o que me rodeia é cansativo. É plural demais para um sexo tão singular.

escalada

Conheci o amor ao longo das trombadas com os muros altos, que me ensinaram que nunca conseguiria passar por entre o forte concreto. Após quebrar a cara diversas vezes aprendi a escalar. Errei demais ao apoiar os pés em locais inapropriados. Às vezes, pisando forte demais em locais muito frágeis, agarrando em galhos já secos, ou até mesmo, perdendo as forças e caindo ao chão novamente. Ralei os joelhos, sangrei sozinha. Nunca desisti. Às vezes achei que não encontraria forças para prosseguir, ou até mesmo que a vontade já não existia mais... Sempre enganada. O que me motiva são os boatos, a rima que ouço dos ventos, o canto dos pássaros que apenas confirmam o que nasci sabendo: a vista é linda. E eu continuarei subindo.


sobre saudade

      A Saudade é o pior tormento, já dizia Chico Buarque. Habituei-me à ela como quem todos os dias abre os olhos ao despertar, uma necessidade precisa. Como faria eu se passasse o dia com os olhos tapados? É preciso abri-los. Saibamos que nós abrimos os olhos ao despertar e não erroneamente, como alguns pensam, despertamos porque abrimos os olhos [note a sutil diferença, porém fundamental]. E assim é a saudade. Num de repente ela surge furtiva, apressada e assim dolorida. E então neste mesmo relance que vem, você é despertado e nota que ela sempre esteve ali, sempre estará. A Saudade lateja no peito como um coração adolescente disparado ao ver-se numa situação tão íntima com a pequena namorada com a qual dança. A mão gentilmente desliza para a cintura da moça, o vestido leve de seda permite asas à imaginação e o coração fraco cede, bate. Assim é a saudade. A saudade é cada lambida de Sol ardente que seu corpo toma pela manhã ao pegar o caminho para o trabalho, é a mesa posta para somente um no café-da-manhã. E sendo assim não me surpreenderia se estivesse emocionado com aquela música, aquela que dizia algo sobre os dois, que antes um, agora somente metade. A Saudade é a velhice só, é perceber em cada brisa fria da manhã a lágrima quente da lembrança guardada, saudosa e bem-vinda. E já que foi me dado o direito, usufruirei todos os dias desse nobre sentimento, sonharei todas as noites com a presença que perdi, me emocionarei com a chuva e dormirei embalada em suas canções. Pois faz parte de mim, e mais do que isso, é o que sou, como os olhos que se abrem ao despertar pela manhã.

Oh, pedaço de mim
Oh, metade adorada de mim
Leva os olhos meus
Que a saudade é o pior castigo
E eu não quero levar comigo
A mortalha do amor, adeus

entrei em casa e havia uma carta embaixo da porta que dizia assim:

Meu Amor, te perdi. Não por relutância ou comodismo, mas por não ser permitido a mim mais estar aqui. Ficará o futuro que não chega, os planos que não se concretizam, os filhos que não são gerados. Me perdi. Logo que parti notei o erro que cometia mas não pude voltar atrás. Meu Amor, enxugue as lágrimas. Dias novos virão, amores não tardarão, limpe este rosto, que de tão alvo confundo com o céu, mas ao olhar pros lados vejo que não está aqui. Te perdi. Te imploro perdão. Siga com a sua vida, seja feliz, mas não te esqueças de mim. Te imploro que me guardes na lembrança, de um amor fadado ao vento, ao silêncio de dois corpos, ao sorriso de uma amizade, à um -eu te amo nunca pronunciado, aos sussurros e gemidos que nunca nos deleitamos. Me perdi. Guarde uma fotografia, guarde uma memória, guarde um rabisco qualquer, mas não te esqueças de mim. Pois enquanto me perdia em meus próprios braços e soluços em meu próprio ofegar que notei o quanto sempre te quis.

Meu Amor, te perdi. E não pude achar-te em mim.

sobre amores guardados

Não tive a chance do olhar de adeus, de uma despedida correta, declarada em paz ou em guerra, pelos seus olhos pequenos. Olhos pequenos que traduziam tão bem a vontade de minhas mãos em teu corpo, onde brincava desajeitada e ousadamente pelo seu jeans. E o não despedir-se meu Deus, me sufoca ainda nas noites de solidão, onde minhas mãos pousam em meu peito e meu coração chora o bater fraco e lento ausente do seu. Me acovardei, chorei seus olhos cerrados e jurei não esquecer. E eis minha maior contradição: por medo de me esquecer me lembro todos os dias, todos os dias.

tempo

Ela estava ali - na imagem refletida de um rosto cansado dos longos dias curtos que se embaralhavam em semanas [e meses] confusos e indistintos. Não se lembrava o que comera no café - não se lembrava que roupa usara no dia anterior - apenas não se lembrava de muitas coisas e assim como num relance, esquecia-se de ser o que era - essa anulação da vida adulta - dos carnês de pagamento, dos extratos bancários, do trânsito à caminho do trabalho. Perdia-se, pobre criatura, em nada. Pois era nada o tudo que tinha em vida, e nessa constatação então, chorou. E viu-se, olhos avermelhados, boca aberta, cabelo desgrenhado, mulher frente à um espelho de mágoas - de vida que se esquece de viver - de caminhos que esquecemos de trilhar. Esfregou os olhos, lavou o rosto, se olhou no espelho com a incredulidade de uma criança frente à perspectiva de uma nova experiência: precisava se encontrar. Na saída de casa, deixou as chaves do carro em cima da mesa. Já então na rua abriu as asas - e o vento fez voar.

banquete

Tenho muito a te ensinar, Verinha. Mas não vou te privar da libertação que é o deguste da vida. Você provará cada sabor e entenderá qual melhor convém. Inventará teus próprios temperos e realizará banquetes que te fartarão. Uma coisa te digo: há apenas um no mundo que sempre lhe bastará, que é e será você própria. Quanto aos outros dose bem. Saiba bebê-los devagarinho, sem embriagar-se e ver-se inconsciente de suas ações. E não espere de outros sabores que seu coração produz. Às vezes, sei que soa engraçado, o coração de outras pessoas pode ser mais salgado, ou doce demais. Talvez até insosso. O que não os torna melhores ou piores que você. Gosto é isso, Verinha. Você verá e entenderá.

estrada

O esforço para soar honesto lhe entortava a boca e desfigurava aquele rosto que achava bonito enquanto sereno. Não que ele fosse, e não o era, mas agradava-me as peças em estado individual: o nariz pequeno, as orelhas corretas, as sobrancelhas arqueadas - o havia conhecido ainda menino, ridículo, magricela e cabeçudo, andava pelas ruas sempre com algo nas mãos e isso havia me marcado pois era a única lembrança que traria dele da infância: uma fruta, um pote, um bandolim, um bicho. Sempre aquelas mãos ocupadas, que agora, em minha frente, pareciam desajeitadas e gesticulosas demais sem meu corpo a dar-lhe trabalho e ocupação. Seus olhos não prendiam-se nos meus: "não consegue olhar-me" - imaginava divertida enquanto o pobre diabo sofria em suas palavras incompletas - a sensação de domínio me agradou. Eu, mocinha mal feita, de pernas tortas e um ar de mais sobriedade do que realmente padeço, ali, parada, escutando uma confissão de amor entrecortada por tantos sinais que me afoitavam todos os sentidos, me desfazendo a concentração. Mas o que me atiçava mesmo eram as mãos vazias, e por isso, tão instintivamente, talvez, as tenha pego e entrelaçado minha própria cintura e pronto: agora estavam corretas, faziam sentido. Cravei-lhe os olhos com maldade dentro dos seus para que não pudesse fugir à minha vontade de fincar a bandeira da vitória em seu terreno não trilhado pelo amor, matas virgens que adentrei língua adentro em sua boca. E então foi só silêncio. E dois corações que palpitaram um beijo molhado, sem sabor, marcado pela ferocidade jovem de uma pessoa que sempre sabe o que quer, e por isso se perde em seus caminhos - e um menino que apenas estava ali, e por isso, era. E seria. 

Labirinto

Tenho o corpo leve, e assim
facilmente
me levanta, me prensa e me amarrota.
Tenho as pernas finas
para que possa
gentilmente

se enroscar entre as coxas minhas
meus tornozelos, meus joelhos, minha virilha
e se esquecer por onde entrou
para então
nunca mais

achar a saída.

cotidiano

- Olá.
- Não
- Oi?
- Já disse. Não. Agora é só um olá mas depois serão alguns chopes em um barzinho com showzinho ao vivo. Risadas sobre situações engraçadas, gostos em comum. Eu me derretendo pelo Chico e você falando do PT. Não, não quero. Você imagina o que vem depois do PT? Imagina?
- Mas...
- Depois do PT eu falando que acho melhor encerrar a conversa. Você vai exigir o meu número de telefone e eu vou fazer charme dizendo que você não vai me ligar. Assim você me passa o seu. E então eu vou te ligar pra gente tomar um café, e é claro que você vai aceitar! Cachorro!
- Mas eu...
- Nada disso! Você vai querer me beijar, vai arranjar outros encontros, vai conseguir! Eu vou me apaixonar... Daí colega, já estará tudo acabado mesmo... Porque vem os filhos... 1, 2, 3! E com ele as crises. Parcelas em 12x sem juros. Decorar apartamento, arrumar cachorro. Não quero isso pra mim não.
- Eu não sei o que...
- Não, não sabe mesmo. Afinal as crianças estarão na barra da MINHA saia. Eu terei que virar mil pra ser mãe, mulher, dona-de-casa, trabalhadora. não Senhor! Deus me livre! Já te vejo chegando três horas depois do seu expediente, com cheiro doce de mulher e eu louca caçando marca de batom no seu colarinho.
- Minha senhora...
- Não! Esse seu OLÁ não é o primeiro e nem será o último deles. Te dispenso. Te amo por tudo que poderíamos ter vivido, mas não deu certo, nunca daria. Então em troca do seu olá, o meu tchau.
- Mas e sobre o cartão? Você não vai querer conversar? Crédito ilimitado senhora!
- TCHAU!
Moço, ela é tão bonita
Que só pode ser feliz.

senhora

Vamos nos encontrando em meio à tantas unhas, fios de cabelo, dentes, lágrimas e suor. Pego-me pensando sobre o que poderia acontecer e gosto de sofrer sozinha, me dá ares de Senhora, mulher que muito ama. Faz-me acreditar que a essência de tudo, então, estará nele: o Sofrimento. A alegria não seria tão extasiante sem o amargo da Angústia, da Dor e da Espera. Comportam-se como membros do nosso próprio corpo, de modo como um braço, ou então um dedo importante, que me permite esta escrita indecente. E sempre haverá esse gosto agridoce do sentimento de espreita. Sempre haverá esse prazer cruel de encontrar-se. Na dor.



desordem

Eu estava em paz quando você chegou. Jogada no sofá, brincava com meus dedos num batuque insistente que poderia ter irritado quem me fizesse companhia - mas não havia ninguém. E num de repente: mão pesada que bateu na porta e assustou meu coração. Não sabia quem era, não deixei entrar. Insistente foi você. Eu estava só quando você chegou, sabe? E essa coisa de solidão é saber-se ignorando sua própria imagem no espelho, pois ali não há nada e nunca há ninguém. Estava assim. Louça suja na pia, cama desarrumada, lixo acumulado, poeira no chão. E foi nessa casa bagunçada que você se adentrou, numa segunda vez. 



As cortinas estão fechadas e não deixam a luz do sol entrar. A boca entreaberta com a barba amarelada pela nicotina me olha como quem pergunta: - há alguma coisa aí?. E aponta pra uma menina, que antes sempre sozinha, agora ali.  - Tem, mas acabou. Ou pelo menos era o que ela acreditava. Até olhar pra esse lugar ocupado na sala e esquecer que há paz na solidão, paz? questiona. Aqui dentro está escuro, mas lá fora faz sol, percebi. Talvez seja hora mesmo de me desfazer dessas velhas cortinas e faxinar o meu lar.

trincheira






seus olhos fizeram da minha brisa tempestade
do meu medo,
trincheira

meio a tormenta que teus lábios
- meu fio de instabilidade -
cavou,
protegendo a mim mesmo

e então caiu
a chuva,
a água,
o céu - teus olhos tão mansos

encheu-se minha vala
permaneci ali e
naufraguei
na correnteza das coisas que vão
e não voltam mais

A fé me parece como aquela moça bonita demais - que se sabe madura no pé - e faz pouco caso do bombom recheado que a mão do moço estende de olhos baixos. E meus olhos - que também são os olhos desse moço - tem medo de encará-la e ver que essa bobagem toda que a gente inventa de esperança é apenas uma parte de nós que já se sabe consciente do susto que vai tomar com aquele filme de terror, e ainda assim, grita alto o medo já conhecido. Fico de olhos baixos por aqui, com essa chama fria de esperança que a fé sempre alimenta, com medo de subir os olhos e ver que todo o mal que eu acredito existir realmente estar ali. Que Deus me dê forças.