Havia fecundado o medo em meu ventre - as inseguranças oriundas de ser mulher: eu, fêmea, a quem filhos havia gerado, meu útero desocupado, um ser não compreendido - perdoada e esquecida por homens a quem havia idolatrado (como criança a que ama os pais) e depois trespassada como navalhas de fino corte - silêncios, lonjuras, insônias superadas em licores de açaí... Gestava por dias ininterruptos a ideia de seu passado: a quem havia amado, as dores, o fuxico da vida que levara com constrangido orgulho de quem carregava o brio masculino de quem a tudo se permitiu, a lembrança etílica das noites que com beleza e encanto tornara poética o absurdo do caos, a lascívia de amores carnais onde encontrava seu gozo - um respiro, um minuto - le petit mort. Misericordiosamente me remiti das culpas: eu, que carrego a alcunha de outros amores, que em minha genitália provo gozo e ditam censura - minhas células que em regozijo golfam essas palavras que me atravessavam a garganta numa tarde ensolarada na pacatez do cerrado: um parto empelicado - feio e milagroso, maduro como um feto recoberto pelo vérnix caseoso - uma membrana protetora, fétida, dúbia, como a mim compreendi ser. Feia e bonita - em incompatibilidade - como a toda mulher que ama. Eu não sei explicar, mas sei compreender. Nasci.