Se abateu sobre mim há cerca de um ano a iminência do nada: não era nada, não significava nada, nada realizara, nada pretendia, e sendo eu um nada havia parido duas crianças, concluído uma graduação, amado minha família, estabelecido amigos, escrito os mais belos poemas que havia lido, apreciado a comida e a gente, existido e criado meu próprio universo onde reinava mortificando meu espírito no álcool e em desejos infantis não racionalizados, expressados em choro e solidão - autodepreciativa e psicótica, delegada a proletarização de minha subjetividade, naufragada em um oceano imposto de trabalho e consumo insaciáveis e deletérios, ao qual sucumbem os vínculos afetivos, a criatividade, o amor e assim - a vida.
Então novamente ela veio: com sua foice, e a vida que me usurpara: - "vê que o corpo cessa, mas o espírito perdura? não no mundo que não pára: a fábrica que ainda elimina seus gases tóxicos, o veneno que mata a terra e contamina rios, a comida cancerígena, a vida que nada vale - mas acesa na memória do amor fraterno e a lembrança saudosa da pessoa que genuinamente amou - e revoltada, perplexa, incrédula ela se assenta: a consciência que somos eternos e que eu, a morte, não sou nada - pelo contrário: comprovo de que o erro não é o ser, mas o todo como está dado, pois não liberto e não trago alívio."
A incógnita do saber tem assombrado meu sono e desperta percebi que haverá de ser assim: preciso crer, pois não crendo eu mesma me tripudio, alimento um fantasma impostor em meu espírito que questiona todas minhas crenças me abatendo o mal - me acamo em uma mulher delegada as funções estabelecidas pelo patriarcado - anestesiada em minha função doméstica, esquecida do espírito de ser/existir e mal amo, mal falo, mal desejo, a depressão - nascida do capital e dada como condição natural do homem pós-moderno - melancólico, delirante de punição, suicida - o novo "normal".
O outro, que também eu, se doente e faminto, impossibilitado e incapacitado, angustia-me a vivência em sua totalidade pois o peso da meritocracia fraudulenta em nossos ombros que nos impõe a mentira como verdade e nos rouba a crença minando o espírito e subjugando nossos corpos ao trabalho compulsório e infindável e se fraqueja a carne nos escarra em nossa cara um "Tio Sam" faminto de carne e espírito: "fraco! incapaz!" e nos puxa as partes muito bem específicas em engendrada roda de moer gente e espírito em que pendura as cordas, dá os nós, se coloca o pescoço e dá o empurrão que finda a vida e depois delega a morte ao próprio homem, a vítima, superexplorado, consumido, raquítico de justiça e domínio - o chute no cachorro morto.
Tenho exercitado vivenciar a vida como um exercício de fé professada - definido bem o rumo, na escolha da rota tenho me desparamentado dessa lavagem que me insensibilizou ao outro: quero estar ao lado dos oprimidos, dos rejeitados, dos derrotados. Quero compartilhar o pão e ajudar a curar feridas. Quero dialogar com afeto e equilíbrio. Tenho me espelhado em Cristo. Quero a justiça divina, a comunidade entre os homens, a insurreição de nós.