fui uma criadora de galinhas quando era criança - comprava os pintos pequenos em lojas de produtos agrícolas, amarelos de penugem empilhados aos montes dentro de pequenas gaiolas iluminadas por amarelas luzes incandescentes incessantes,  escolhidos ao acaso por um par de mãos pequenas - predestinados ao enjaulamento - criaturinhas salvas por uma pequena eu criança que os alimentava depois em casa com a própria mão e suportava feliz as broncas maternas de sujeira e bostas de galinha pela casa de minha própria mãe exausta em sua jornada de mulher solitária - porém me sentia amada, e amada me sentindo tudo tolerava até o dia que chegasse o sacrifício: pescoços degolados posteriormente servidos em panelas impecavelmente ariadas em terças feiras entediadas

a mesma garganta que previamente chorava a morte de algo semelhante a um filho depois mastigava a carne branca desinteressada olhando desenhos multicoloridos na televisão para a tarde pegar as moedas e  sair para a rua para aquisição de um novo bicho a quem destinasse meu afeto maternal 

lembro agora da última galinha que havia criado, andava pela casa seguindo meus passos, adotara um balde de terra onde botava seus ovos, respondia aos meus chamados e gostava de se aninhar sobre minhas pernas entrelaçadas, quando morreu esta (de morte natural) não permiti que servisse a fome de meus pais, e foi a primeira vez que experimentei o luto, tendo chorado por uma tarde e uma noite seguidas e depois dela nunca mais tive outro pinto

lembro de quando pela primeira vez acompanhei um velório familiar - um tio-avô que estava presente ocasionalmente nos almoços de família, dado aos prazeres do álcool uma vez havia roubado o pastor alemão de minha avó para prejudicar o dono de um bar onde costumava dar trabalho e tendo feito dívida não havia conseguido outra dose - jazia pálido e narigudo em sua cama de madeira na sala de estar da casa pobre de sua irmã, minha avó, que chorava a perda inconsolada do irmão que tanto amara - não compreendi o sentimento, e no quintal de casa o mesmo cachorro a quem ofendera o dono do bar ousou de tentar morder meus calcanhares - senti medo e corri, mas não incomodei meus pais com meu choro tendo o guardado dentro do peito - me senti emocionar com o coração acelerado e foi a primeira vez que me lembro de ter silenciado meu próprio sofrimento 

lembro quando morreu meu pai, já aos cuidados paliativos na casa de meus avós passava os dias deitado em sua cama hospitalar, emagrecido, gigante como um urso, se confundia em sua demência cancerígena e não reconhecia mais seus próprios pais, porém me sorrira ao adentrar o quarto como se me lembrasse, me abençoou e o beijei a testa pálida, saí para a rua com alguns amigos e pela manhã a ausência que perdura então até o infinito do hoje e agora

penso nas vidas ceifadas e nas famílias a quem foi retirado o direito do adeus, sepultados corpos de almas os quais os últimos olhares trocaram-se com desconhecidos mascarados e cansados seres humanos, desfeitos por líderes gananciosos e irrecuperáveis em seus desejos infantis, perversos manipuladores da morte que se fazem de deuses - esquizofrênicos e hostis 

penso na multiplicidade do comportamento negacionista dentro de lares quebrados, pessoas infelizes sem perspectiva de liberdade, reféns de suas próprias vaidades institucionalizadas, sobrepostas a própria consciência, fanáticos reprodutores do discurso de morte que assola a própria porta de suas casas, e essa, a morte, a que tudo assiste, tudo vê, perplexa e feliz em sua completude a ceifar a esperança, humanidade, sobriedade e consciência  de nossos dias, vislumbrando deslumbrada seus próprios pintos amontoados uns sobre os outros, com sua foice estendida, não ao acaso, a nos degolar a esperança e alegria

não choro mais.