carta para quando cecília puder compreender

Quando você nasceu havia uma confusão de barulhos ao redor. Seu pai se afastou e retornou sem você - eu não me preocupei. Naquele momento já entendi a primeira lição que a maternidade me trouxe: mãe sabe esperar. O que ele me disse naquele turbilhão de sensações era que você era linda - hoje ainda me surpreendo com sua beleza. Me trouxeram você... Um nariz, uma boca aberta, choro alto, amigos ao redor e mesmo assim era só você. Tentava juntar todas as peças que via para formar seu rosto com certa dificuldade, deixei de lado: teria a vida toda para isso - te abençoei. Minha hóspede partia e deixava em mim um quarto bagunçado. Nesse primeiro vazio momentâneo lembrei de papai. Filha, você não terá a oportunidade de conhecer seu avô nesta vida, mas acima de tudo ele era um homem que amava os filhos. Essa foi a minha segunda lição: compreendi meu pai. O vazio que você deixava em mim potencializou-se com a falta que ele fará em sua vida e frente à isso, chorei. Me fecharam a barriga e me expandiu o coração. Visualizei minha terceira lição: nossos filhos não nos abandonam o corpo - mudam de lugar. Peço sabedoria para que saiba orientar seus passos nos caminhos que trilhar. Rezo para que seja uma pessoa boa. Seja boa, meu amor... Não permita que a nebulosidade do mundo e os corações partidos que ainda haverão de ocorrer endureçam seu coração. Minha dádiva é te ver crescendo. E quando grande você for, perdoa mamãe pelos erros cometidos. Todo mundo erra, compreenda isso. O mundo é um bom lugar, é o nosso lugar, aproveite o passeio.
Eu amo você

RETORNO PARA CASA


Ao todo já morri cinco vezes. Talvez ache curioso este fado - porém, este corpo ainda poupado da velhice há muito já não se lembra da criança que outrora foi. Morri cinco vezes e mesmo que não note nunca me recuperei totalmente - sigo aos pedaços o que meus tecidos tentam em vão recuperar: aquela parte de nós que quando se vai, comprova a irreversibilidade da morte, do que apenas deixa de ser o que era.
A primeira vez que morri soube que não era extensão de minha mãe. Brotaram-me dentes nas gengivas e ao sinal da menor mordida em seu seio sentou-me o tapa nas nádegas: "menina má!". Devo ter chorado, não me lembro. Hoje choro frente a perspectiva de descobrir-se tão só no universo.
A segunda vez que morri me afoguei. Havia certa ideia não muito trabalhada sobre acreditar na invencibilidade que meu corpo acreditava possuir... Sempre fui pouco exposta aos perigos que não incluíssem subir em árvore ou pequenas covas no jardim. A falta de ar e o fogo que adentrou os pulmões naquele pequeno mergulho me mostraram - dolorosamente - quão frágil o corpo é.
A terceira vez que morri foi quando me apaixonei. Neste ponto sou obrigada a discordar dos grandes filósofos: libido é pulsão de morte. Uma procura insaciável por algo que não me lembro ter perdido.
A quarta vez que morri foi quando perdi meu pai. Castraram-me as palavras. Ainda não me soa correta a vida sem ele. Ainda aguardo seu retorno, e aqui, de forma singela, a morte mostrou-se de maneira mais cruel: leva um pedaço que até então você não sabia possuir - e logo após, mata-te pela última vez: onde incapaz de continuar, te dá forças, e você compreende que apesar de toda ela, de tudo isso, está vivo.