escrevo

Escrevo em defesa do silêncio estuprado - proparoxítonas gritadas à esmo - contra a rima de meus lábios cerrados. Escrevo a próprio punho a revolta que queima minha pele e se transfere ao barulho grafitado no papel - aqui nada se apaga, nada se perde, nada se é. Conjugo meus verbos em tempo errado - blasfemo contra o correto. Toda essa gente que me grita regra - à merda - eu escrevo. Eu não falo. Eu não digo. Eu não grito. Minha pausa é ponto final, meu grito exclamado, minhas dúvidas, incertezas - interrogo-me em tantos braços - e findo-me em reticências. Eu escrevo porque não sei compor.

dúbio

Hesito frente as partes que brigam dentro de mim. Este útero que grita o filho não gerado - essa jovem que carrega pulsão de morte no seio. A mulher que se achega no colo do amado - esta puta que entrega-se a qualquer galanteio [pois não sou - não sei]. Corre-me essa menina que se diverte na montanha-russa e levanta os braços sem medo - e a criança temerosa que se esconde frente ao brinquedo [eu não vou - me estarreço]. Perco-me nos caminhos traçados - esta parte estúpida de mim que geme o cansaço do descaso - a insignificância do eu - e chora, grita, baba e a outra - que apenas ri de meu desembaraço e coroa-se rainha do acaso - mãe de todos meus desejos. Este lado que me é cego - e este lado que apenas não vejo.

tato

Dos cinco sentidos era tato – o toque. Seus dedos em meu cabelo lembravam-me desavisado: “está viva, vê? Vai sem pressa, pequena. Segue seu caminho”. E talvez não soubesse que iria – ou que indo já não mais lhe pertenceria. Porém, fui. Soltei os dedos que carreavam minhas inseguranças para partir. Ali me despertou o primeiro sentido: era dor – ainda arde minha pele. Lá fora eram outros muitos que me confundiam a textura: uns tantos ásperos, outros tantos avelãs e enfim, um pêssego em minhas mãos. Aqui reconheci meu lugar – achei-me em seus dedos e minha pele era febre matada frente ao seu toque. Continuo sem pressa - minha propriocepção tomou seu corpo e já não me é desavisado seu lugar: pertence junto a mim. Aprendeu a partir e ainda assim, escolheu ficar. A vida inteira me levou pela mão, me subiu pelos braços, acabou-me na boca e a cuspo, engulo, digiro. Alimento-me do que se consome em mim e vivo.

reboco

Era um muro de reboco, mal-arranjado e displicente que norteava o inicio da minha rua. De longe o via: seus rabiscos coloridos da criançada que ali brincava - um raio de sol, um jogo da velha, diversas flores e borboletas coloridas num jardim infantil de maravilhosos rabiscos tortos. E assim, de longe, sabia que estava em casa. Meu descanso começava nas borboletinhas que insinuavam seu bater de asas - porém fixas no cimento cinza e sonso de um muro de casebre desajeitado, e ainda assim, lar de todos. Até que então, certo dia, achei um pedaço de giz no chão - pontinha de nada - cor de rosa, já toda gasta. Não resisti: gravei meu nome e o teu no muro que me mostrava o fim de meu caminho. E agora amanhecemos e entardecemos entrelaçados num rabisco mal-escrito de um muro que me lembra sempre: todos os dias retorno para casa. E meu descanso é em seus braços.