tempo

Ela estava ali - na imagem refletida de um rosto cansado dos longos dias curtos que se embaralhavam em semanas [e meses] confusos e indistintos. Não se lembrava o que comera no café - não se lembrava que roupa usara no dia anterior - apenas não se lembrava de muitas coisas e assim como num relance, esquecia-se de ser o que era - essa anulação da vida adulta - dos carnês de pagamento, dos extratos bancários, do trânsito à caminho do trabalho. Perdia-se, pobre criatura, em nada. Pois era nada o tudo que tinha em vida, e nessa constatação então, chorou. E viu-se, olhos avermelhados, boca aberta, cabelo desgrenhado, mulher frente à um espelho de mágoas - de vida que se esquece de viver - de caminhos que esquecemos de trilhar. Esfregou os olhos, lavou o rosto, se olhou no espelho com a incredulidade de uma criança frente à perspectiva de uma nova experiência: precisava se encontrar. Na saída de casa, deixou as chaves do carro em cima da mesa. Já então na rua abriu as asas - e o vento fez voar.

banquete

Tenho muito a te ensinar, Verinha. Mas não vou te privar da libertação que é o deguste da vida. Você provará cada sabor e entenderá qual melhor convém. Inventará teus próprios temperos e realizará banquetes que te fartarão. Uma coisa te digo: há apenas um no mundo que sempre lhe bastará, que é e será você própria. Quanto aos outros dose bem. Saiba bebê-los devagarinho, sem embriagar-se e ver-se inconsciente de suas ações. E não espere de outros sabores que seu coração produz. Às vezes, sei que soa engraçado, o coração de outras pessoas pode ser mais salgado, ou doce demais. Talvez até insosso. O que não os torna melhores ou piores que você. Gosto é isso, Verinha. Você verá e entenderá.

estrada

O esforço para soar honesto lhe entortava a boca e desfigurava aquele rosto que achava bonito enquanto sereno. Não que ele fosse, e não o era, mas agradava-me as peças em estado individual: o nariz pequeno, as orelhas corretas, as sobrancelhas arqueadas - o havia conhecido ainda menino, ridículo, magricela e cabeçudo, andava pelas ruas sempre com algo nas mãos e isso havia me marcado pois era a única lembrança que traria dele da infância: uma fruta, um pote, um bandolim, um bicho. Sempre aquelas mãos ocupadas, que agora, em minha frente, pareciam desajeitadas e gesticulosas demais sem meu corpo a dar-lhe trabalho e ocupação. Seus olhos não prendiam-se nos meus: "não consegue olhar-me" - imaginava divertida enquanto o pobre diabo sofria em suas palavras incompletas - a sensação de domínio me agradou. Eu, mocinha mal feita, de pernas tortas e um ar de mais sobriedade do que realmente padeço, ali, parada, escutando uma confissão de amor entrecortada por tantos sinais que me afoitavam todos os sentidos, me desfazendo a concentração. Mas o que me atiçava mesmo eram as mãos vazias, e por isso, tão instintivamente, talvez, as tenha pego e entrelaçado minha própria cintura e pronto: agora estavam corretas, faziam sentido. Cravei-lhe os olhos com maldade dentro dos seus para que não pudesse fugir à minha vontade de fincar a bandeira da vitória em seu terreno não trilhado pelo amor, matas virgens que adentrei língua adentro em sua boca. E então foi só silêncio. E dois corações que palpitaram um beijo molhado, sem sabor, marcado pela ferocidade jovem de uma pessoa que sempre sabe o que quer, e por isso se perde em seus caminhos - e um menino que apenas estava ali, e por isso, era. E seria.